O processo se torna a pena.
5 de set. de 2025
Crônica de uma Absolvição Anunciada: O Processo como Labirinto e a Justiça em Transe Psicodélico
Introdução: O Último Suspiro da Razão no Abismo da Burocracia
Este não é um artigo jurídico no sentido estrito do termo. Não se propõe a ser uma mera exegese do processo nº 50XXXXXX-60.2019.4.03.61XX, que tramitou perante a Justiça Federal de São Paulo. Antes, utiliza-o como um espelho, um fragmento de vidro quebrado que reflete, de forma distorcida e alucinógena, a imagem de um sistema de justiça criminal em estado de delírio. A tese fundamental que se desdobra nestas linhas é que o processo penal, em sua concepção iluminista, não é um mero instrumento de busca da verdade, mas um dique de contenção contra o poder punitivo do Estado, uma barreira de civilidade que nos separa da barbárie.1 O que se analisará aqui é a corrosão desse dique, um caso exemplar onde a lógica se dissolve e o procedimento se torna um fim em si mesmo, uma performance de poder vazia de sentido.
A análise será guiada pelas lições de mestres brasileiros como Aury Lopes Jr., que concebe o processo penal como um instrumento de garantia e limite ao poder de punir do Estado.2 Adotaremos uma perspectiva da criminologia crítica, informada por autores como Salo de Carvalho e Nilo Batista, para desvelar as funções latentes do sistema penal que operam para além do discurso oficial de justiça.3 O percurso processual em tela se assemelha a um labirinto kafkiano, onde a racionalidade é a primeira vítima, e o indivíduo, Josef K. reencarnado, se vê enredado em uma teia burocrática incompreensível e esmagadora.5
Nessa viagem psicodélica pelos autos, transcende-se a visão tradicional do processo como um mecanismo falho de apuração da verdade. Ele se revela, ao contrário, como um ritual bem-sucedido de afirmação do poder estatal. A longa duração, a denúncia inepta e a absolvição final não são falhas do sistema, mas partes integrantes de uma liturgia burocrática cujo objetivo não é a justiça, mas a demonstração de que o Estado pode submeter qualquer cidadão ao seu escrutínio, por qualquer tempo, independentemente do mérito. O processo torna-se uma tecnologia de sujeição, mantendo o indivíduo em um estado de suspensão e angústia. A absolvição, nesse contexto, não é uma vitória, mas o fim do ritual, a liberação do sujeito após a demonstração de poder ter sido concluída.
A Gênese do Absurdo – Uma Gestação de Sete Anos para uma Acusação Natimorta
A jornada pelo absurdo começa com a distorção do tempo. Os fatos delituosos que deram origem à persecução penal ocorreram em julho de 2017.7 Contudo, a denúncia, peça que formaliza a acusação e dá início à ação penal, só foi oferecida em 24 de setembro de 2024, mais de sete anos após o ocorrido.7 Este lapso temporal não é um mero detalhe; é a própria substância da injustiça. A defesa, em seus memoriais, corretamente aponta essa dilação como uma violação flagrante ao direito fundamental à razoável duração do processo, consagrado no artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal.7
A investigação, marcada por sucessivas e infrutíferas solicitações de diligências que se arrastaram por anos, demonstra uma paralisia estatal que se converte em uma forma de pena antecipada, uma tortura procedimental que corrói a dignidade do acusado e aniquila sua capacidade de defesa.7 A jurisprudência dos tribunais superiores é pacífica ao reconhecer que o excesso de prazo injustificado na condução do inquérito policial ou da ação penal configura constrangimento ilegal, passível de correção via
habeas corpus.9 Contudo, no caso em tela, a máquina continuou a moer, lenta e inexoravelmente.
É impossível dissociar essa persistência anômala do fato de a vítima ser uma Procuradora da República.7 Tal circunstância levanta a suspeita de uma "inércia seletiva" 11, uma violação tácita ao princípio da impessoalidade que deveria reger a administração pública.12 O sistema penal, que rotineiramente arquiva casos por falta de estrutura ou indícios mínimos, aqui se moveu – ainda que de forma errática – por sete longos anos. A pergunta que ecoa no vazio dos autos é: teria sido o mesmo se a vítima fosse um cidadão comum, desprovido de capital institucional? A seletividade do sistema penal, que mira seus recursos e sua fúria de maneira desigual, parece ter operado aqui não para acelerar, mas para prolongar uma agonia processual, como se o arquivamento fosse uma opção inaceitável.14
A demora, neste caso, não foi um mero efeito colateral da ineficiência. Foi a causa direta e instrumental do prejuízo à defesa. O Estado, com sua letargia, destruiu a principal prova de inocência da acusada: o registro da venda de um celular na plataforma Facebook, que justificaria o recebimento do dinheiro em sua conta. Anos depois, a acusação, em um ato de suprema perversidade lógica, utilizou essa ausência de prova – criada pela própria inércia estatal – como o principal argumento para pleitear a condenação.7 O tempo, portanto, foi manejado como uma arma processual contra a ré, em uma inversão kafkiana onde o Estado cria a impossibilidade de defesa e depois a utiliza para acusar.
Marco Processual | Data | Tempo Decorrido (desde o fato) | Observações Críticas |
Fato Delituoso | Julho de 2017 | 0 meses | Início da contagem do prazo prescricional e do dever de investigação do Estado. |
Instauração do Inquérito | 2017 | Meses | Início formal de uma investigação que se arrastaria por anos. |
Deferimento da Quebra de Sigilo | 04/12/2019 | 2 anos e 5 meses | Medida deferida, mas cujo cumprimento efetivo pelas instituições financeiras levaria anos, exigindo múltiplas reiterações judiciais. |
Relatório Final da Polícia Federal | 10/03/2022 | 4 anos e 8 meses | A autoridade policial conclui haver indícios contra a acusada, apesar da fragilidade manifesta dos elementos colhidos. |
Oferecimento da Denúncia | 24/09/2024 | 7 anos e 2 meses | Violação manifesta do direito à razoável duração do processo. A acusação formal surge quando a capacidade de defesa já está irremediavelmente comprometida pelo tempo. |
Sentença Absolutória | 03/09/2025 | 8 anos e 2 meses | O Judiciário, ao final, reconhece a ausência de provas, confirmando que a persecução penal foi um exercício de futilidade e arbítrio. |
X
A Alquimia Perversa da Acusação – Transmutando Vítima em Cúmplice sem Prova
A denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal (ID 339909792) é um artefato de ficção jurídica, um monumento à "artificialização da justiça". Sua análise revela não apenas falhas técnicas, mas uma profunda desconexão com os princípios mais basilares do direito processual penal. O primeiro sintoma dessa patologia é um erro grosseiro de tipificação. O MPF denuncia os acusados por furto qualificado mediante fraude, crime previsto no artigo 155, § 4º, inciso II, do Código Penal.7 A doutrina e a jurisprudência, contudo, há muito solidificaram a distinção entre esta figura e o estelionato (art. 171, CP).16 No furto mediante fraude, o ardil é utilizado para diminuir a vigilância da vítima e permitir que o agente
subtraia o bem sem o seu consentimento. No estelionato, a fraude induz a vítima a erro, fazendo com que ela, enganada, entregue voluntariamente o bem. A dinâmica de uma transferência bancária fraudulenta, onde a vítima é ludibriada a fornecer dados ou autorizar a transação, amolda-se classicamente ao estelionato. Este erro técnico primário, vindo de uma instituição de elite, é um sintoma alarmante da baixa qualidade do trabalho e da mecanização do ato de acusar.
Mais grave, contudo, é a lógica subjacente à peça acusatória. A acusação se fundamenta na premissa de que, por ter recebido o dinheiro e não ter conseguido provar, sete anos depois, a venda de um celular, a ré é culpada. Trata-se de uma inversão inconstitucional do ônus da prova, uma afronta direta ao princípio da presunção de inocência (art. 5º, LVII, CF), que impõe ao órgão acusador o dever de provar a culpa, e não ao réu o dever de provar sua inocência.7 A denúncia, assim como os memoriais do MPF, constrói uma narrativa de culpabilidade a partir de uma lacuna probatória que foi, como visto, criada pela própria ineficiência do Estado.
Essa atuação ministerial pode ser analisada sob a ótica da "banalidade do mal", conceito cunhado por Hannah Arendt ao observar o julgamento de Adolf Eichmann.18 A produção de uma denúncia tecnicamente falha e logicamente insustentável não é, necessariamente, um ato de malícia deliberada. Pode ser, e talvez seja ainda mais assustador, o produto de uma burocracia desumanizada. Nesse sistema, funcionários públicos, detentores de cargos prestigiados e de remunerações elevadas 20, cumprem suas metas e rotinas sem uma reflexão crítica sobre as consequências devastadoras de seus atos na vida dos cidadãos. O ato de denunciar se torna um procedimento banal, um "copia e cola" de relatórios policiais, desprovido de análise aprofundada. O mal – a persecução penal injusta – torna-se banal porque é produto da irreflexão, da rotina, da cultura punitivista que permeia a instituição, e não de uma intenção sádica.22 A denúncia deixa de ser um ato de imputação sério para se tornar uma peça de ficção que apenas dá início à liturgia do poder.
A Trincheira da Democracia – A Defesa como Ato de Resistência
Em meio a este cenário de delírio burocrático, os memoriais apresentados pela defesa (ID 414337152) surgem não apenas como uma peça processual, mas como um manifesto em defesa do devido processo legal. A defesa, de forma técnica e combativa, expôs as fraturas lógicas e jurídicas da acusação: a nulidade pelo excesso de prazo, o prejuízo irreparável à produção de provas, a atipicidade da conduta pelo erro crasso de tipificação e, por fim, a mais fundamental de todas as teses, a insuficiência probatória e a necessária aplicação do princípio in dubio pro reo.7
Este caso concreto ilustra a tese de que, em um cenário de "artificialização da justiça" e de expansão do punitivismo estatal, a advocacia criminal combativa se torna a última trincheira da cidadania.23 A atuação da defesa foi um exemplo prático de como a resistência técnica e intransigente é essencial para frear o arbítrio e reconduzir o processo aos trilhos da racionalidade. O papel da defesa transcende a mera contestação dos fatos; ela atua como uma força epistemológica que reintroduz a complexidade da realidade em um sistema que tende a simplificações grosseiras, como a máxima implícita da acusação: "recebeu o dinheiro, logo é culpada".
Ao apresentar uma narrativa alternativa plausível – a venda do celular –, a defesa não apenas nega a acusação, mas desafia a própria lógica redutora do sistema punitivo. Ela força o julgador a sair do modo automático e a confrontar a incerteza, restaurando a dúvida, que é o elemento central de um processo penal garantista. A defesa, portanto, não é apenas uma parte no processo; é o agente que impede o colapso do processo penal em um mero silogismo de poder.
A postura da acusação, por outro lado, pode ser enquadrada, em uma análise crítica, dentro da lógica do "Direito Penal do Inimigo", de Günther Jakobs.24 A ré não foi tratada como uma cidadã detentora de direitos, mas como uma "não-pessoa", um inimigo a quem se nega garantias processuais básicas, como a presunção de inocência e o direito a um processo com duração razoável. Neste contexto sombrio, a defesa cumpre o papel de reafirmar o status de cidadã da acusada, de lembrar ao Estado que seu poder de punir não é absoluto e que ele se submete aos limites impostos pela Constituição e pelas leis.
Um Clarão de Lucidez no Delírio – A Absolvição e a Confirmação de um Desastre
A sentença absolutória (ID 419396949) representa um raro clarão de lucidez em meio ao transe psicodélico do processo. O magistrado, ao absolver a ré com fundamento no artigo 386, inciso V, do Código de Processo Penal – por não existir prova de ter a ré concorrido para a infração penal –, essencialmente valida todos os argumentos da defesa.7 A decisão reconhece a fragilidade das provas orais, a plausibilidade da versão da acusada e, crucialmente, a ausência de qualquer elemento que a conectasse à fraude original.
Contudo, esta sentença não deve ser celebrada como uma vitória da justiça. Ela é, na verdade, a prova cabal de que o processo jamais deveria ter existido. A decisão final do Judiciário, ao confirmar a ausência de justa causa que já era manifesta desde o início, retroativamente ilumina a natureza temerária, irresponsável e tecnicamente indigente da denúncia do MPF e da própria manutenção do processo por tantos anos. Isso configura, no mínimo, uma "prevaricação" institucional, um descumprimento do dever de zelar pela razoabilidade e pela legalidade da persecução penal.
A absolvição funciona como um atestado de óbito da racionalidade que deveria guiar o processo. Ela confirma que o sistema operou por oito anos em um vácuo de lógica e prova. O juiz, ao absolver, não está "fazendo justiça", mas sim constatando que a "injustiça" foi a própria existência do processo. A decisão final revela que a máquina judiciária, com todo o seu poder e custo, foi mobilizada para perseguir uma miragem. A absolvição não é a cura, mas o diagnóstico final de uma doença sistêmica.
É imperativo refletir sobre os custos – financeiros, psicológicos e sociais – de uma persecução penal fadada ao fracasso. A elevada remuneração de juízes e promotores, custeada pelo erário público, deve corresponder a um serviço de qualidade, e não a uma performance burocrática que destrói vidas impunemente.21 O dano causado à cidadã absolvida, que teve sua vida suspensa por quase uma década, é irreparável.
Ponto Controvertido | Tese da Acusação (MPF) | Tese da Defesa | Fundamento da Sentença |
Autoria e Participação de Thais | Plenamente comprovada pelo recebimento do valor e pela ausência de provas de suas alegações. | Inexistente. A ré foi uma terceira de boa-fé, vítima instrumentalizada que recebeu o valor pela venda lícita de um bem. | Provas frágeis que não corroboram a participação da ré. Ausência de elementos que a vinculem à fraude. |
Tipificação Penal | Furto qualificado mediante fraude (art. 155, § 4º, II, CP). | Erro crasso de tipificação. A conduta, se criminosa, se amoldaria ao estelionato ou à receptação, mas não ao furto. | A absolvição tornou desnecessária a análise aprofundada da tipificação, mas a decisão se baseou na ausência de concorrência para a infração. |
Ônus da Prova | Invertido. A acusada deveria provar sua inocência, demonstrando a licitude da transação. | O ônus é integralmente da acusação. A defesa não precisa provar a inocência; basta a ausência de prova de culpa. | Acolhimento do princípio in dubio pro reo. A falta de provas satisfatórias e consistentes pela acusação impõe a absolvição. |
Dolo | Presumido pelo recebimento do valor e pela subsequente movimentação financeira. | Inexistente. Não há qualquer prova de que a ré soubesse da origem ilícita dos valores. A boa-fé é presumida. | Não há elementos probatórios que demonstrem que a ré concorreu para a infração penal, o que pressupõe a ausência de prova do dolo. |
Conclusão: O Eco no Vazio e o Olhar para a Barbárie
O caso 5XXXXXX97-60.2019.4.03.61XX é um sintoma exemplar de um sistema em crise. A burocratização que transforma o processo em um labirinto sem saída 27, a cultura punitivista que enxerga inimigos em vez de cidadãos 22, a inércia seletiva que move a máquina estatal por status e não por justiça 11, e a banalização do mal que permite a perpetuação de injustiças por funcionários irrefletidos 18, convergem para criar um espetáculo de irracionalidade que corrói a confiança na justiça e na própria ideia de Estado de Direito.
A reflexão final retorna, com um sentimento de urgência e melancolia, à ideia do Código de Processo Penal como o último bastião que nos separa da barbárie. As regras processuais não são meras formalidades; são a própria substância da liberdade em uma democracia, o dique que contém a violência do poder estatal ilimitado.1 Quando esse dique se rompe, como quase ocorreu neste caso, o que resta é o arbítrio.
O artigo se encerra com um chamado sombrio à advocacia criminal para que assuma seu papel histórico de resistência. Na era da inteligência artificial, da justiça preditiva e da pressão populista por punição, a defesa intransigente, combativa e tecnicamente rigorosa não é uma opção, mas uma condição de sobrevivência para a civilidade. A trincheira da defesa criminal é onde se decidirá, dia após dia, se o futuro será de direito ou de barbárie.23 O processo aqui analisado foi um clarão que iluminou o abismo. A questão que permanece é se ainda há tempo de recuar.