A Função Social do Contrato: Flexibilização da Autonomia Privada
17 de dez. de 2017
A Função Social do Contrato: Flexibilização da Autonomia Privada
1. Introdução
O princípio da autonomia privada sempre foi um dos pilares do Direito Contratual, permitindo que as partes estabeleçam livremente os termos de seus contratos. No entanto, com a evolução do Direito Civil brasileiro, especialmente com o Código Civil de 2002, a função social do contrato passou a ser um limite fundamental à liberdade contratual, garantindo que os contratos atendam não apenas aos interesses individuais das partes, mas também a princípios de justiça e equilíbrio social.
Este artigo analisa a função social do contrato, sua relação com a autonomia privada e a flexibilização contratual em situações concretas, destacando a jurisprudência e os desafios práticos desse princípio no ordenamento jurídico brasileiro.
2. O Princípio da Autonomia Privada no Direito Contratual
A autonomia privada é o direito dos indivíduos de celebrarem contratos segundo suas próprias vontades, respeitando os limites da lei. Esse princípio é essencial para garantir a liberdade econômica e a previsibilidade nas relações contratuais.
O Código Civil de 1916 adotava uma visão clássica do contrato, baseada na ideia de que “o contrato faz lei entre as partes” (pacta sunt servanda). Esse entendimento pressupunha que todos os indivíduos possuíam igualdade de condições ao negociar e cumprir contratos.
No entanto, a partir do século XX, percebeu-se que a liberdade contratual poderia gerar desequilíbrios e injustiças, especialmente em contratos de consumo, trabalhistas e imobiliários. Assim, o Código Civil de 2002 trouxe um novo enfoque, estabelecendo que a autonomia privada deve ser exercida em consonância com a função social do contrato.
3. O Princípio da Função Social do Contrato
A função social do contrato está expressamente prevista no artigo 421 do Código Civil, que estabelece:
“A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.”
Esse princípio impõe que os contratos não sejam apenas um instrumento de satisfação dos interesses privados, mas também um meio de harmonizar as relações sociais e evitar prejuízos à coletividade.
3.1. Elementos da Função Social do Contrato
A aplicação da função social do contrato envolve dois aspectos principais:
1. Limitação à autonomia privada: impede cláusulas abusivas ou contratuais que desrespeitem princípios de justiça e equilíbrio.
2. Proteção de terceiros e da coletividade: contratos não podem prejudicar direitos de terceiros ou o interesse público.
Exemplo: contratos de locação ou compra e venda de imóveis que causem impacto urbanístico ou social podem ser revistos para garantir o interesse coletivo.
4. Flexibilização da Autonomia Privada na Prática Contratual
A função social atua como um instrumento de flexibilização da autonomia privada, especialmente em contratos onde há desequilíbrio entre as partes ou impacto em terceiros.
4.1. Contratos de Consumo
No âmbito do Direito do Consumidor, a função social se manifesta por meio da proteção ao consumidor, parte vulnerável da relação contratual. O Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990) prevê normas que limitam a liberdade do fornecedor, como:
• Proibição de cláusulas abusivas (art. 51 do CDC);
• Direito ao arrependimento em compras online (art. 49 do CDC);
• Obrigação de garantia mínima para produtos e serviços.
4.2. Contratos de Trabalho
No Direito Trabalhista, a função social justifica a imposição de normas que protegem o trabalhador contra condições contratuais abusivas, como:
• Salário mínimo e jornada máxima de trabalho (art. 7º da CF/88);
• Proibição de terceirização da atividade-fim (Súmula 331 do TST);
• Direito ao pagamento de verbas rescisórias em caso de demissão sem justa causa.
4.3. Contratos Imobiliários e de Locações
A função social do contrato também se aplica em contratos imobiliários. O Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) reforça o conceito de função social da propriedade, determinando que o uso dos imóveis deve atender ao interesse coletivo.
No caso de locações, o art. 9º da Lei do Inquilinato (Lei nº 8.245/1991) impede o despejo arbitrário do locatário, exigindo motivação legal para a rescisão.
4.4. Contratos Bancários e Financeiros
Os contratos bancários são frequentemente questionados com base na função social, especialmente quando há juros abusivos ou práticas contratuais desleais. O STJ tem diversas decisões determinando a revisão de cláusulas abusivas em contratos de financiamento, como taxas de juros superiores à média do mercado.
5. Jurisprudência e Aplicação da Função Social nos Tribunais
Os tribunais brasileiros têm aplicado a função social do contrato para corrigir desequilíbrios contratuais e evitar abusos.
5.1. Caso de Revisão Contratual por Onerosidade Excessiva
O STJ tem entendido que, em situações de crise econômica, a função social pode justificar a revisão de contratos, com base no art. 317 do Código Civil, que permite a readequação do valor das prestações quando há uma alteração imprevista das condições econômicas.
5.2. Caso de Abusividade em Contratos de Consumo
Em um caso julgado pelo STJ (REsp 1.361.800), um contrato bancário com cláusula de juros excessivos foi considerado abusivo, e o tribunal determinou a revisão da taxa de juros para um patamar razoável, aplicando a função social como critério de equilíbrio contratual.
5.3. Proteção ao Trabalhador em Contratos de Prestação de Serviços
O Tribunal Superior do Trabalho tem reiterado que a terceirização da atividade-fim sem garantias ao trabalhador fere a função social do contrato de trabalho, determinando a responsabilização da empresa contratante pelos direitos trabalhistas.
6. Conclusão
A função social do contrato representa uma evolução do Direito Civil, garantindo que a liberdade contratual seja exercida dentro de parâmetros de justiça social e equilíbrio nas relações econômicas.
Embora o princípio da autonomia privada ainda seja fundamental para a segurança jurídica dos contratos, sua flexibilização é necessária em situações de desigualdade ou impacto coletivo, como nos contratos de consumo, trabalho e serviços financeiros.
O grande desafio do Judiciário é encontrar um equilíbrio entre a liberdade de contratar e a proteção dos interesses sociais, evitando tanto o intervencionismo excessivo quanto a exploração de partes vulneráveis. A tendência é que a função social continue a ser um critério fundamental para a interpretação e a revisão dos contratos no Brasil, garantindo um sistema contratual mais justo e equilibrado.