Tutela Jurídica das Famílias Multiespécies
18 de mai. de 2016
A Tutela Jurídica das Famílias Multiespécies
1. Introdução
A concepção de família tem evoluído ao longo do tempo, refletindo as mudanças culturais e sociais da sociedade. Dentre essas transformações, destaca-se a crescente reconhecimento das famílias multiespécies, ou seja, núcleos familiares que incluem animais de estimação como membros essenciais da dinâmica familiar.
A afetividade entre humanos e animais domésticos gerou novas demandas jurídicas, especialmente no âmbito do Direito de Família, do Direito Civil e do Direito Animal. Questões como guarda compartilhada de animais em casos de separação, responsabilidade civil por maus-tratos e direitos sucessórios têm sido cada vez mais debatidas no Judiciário.
Este artigo explora o conceito de família multiespécie, sua proteção no ordenamento jurídico brasileiro e os desafios ainda existentes para sua plena tutela legal.
2. O Conceito de Família Multiespécie
Família multiespécie é aquela que inclui um ou mais animais de estimação como parte essencial do núcleo familiar, reconhecendo que os laços afetivos entre humanos e animais podem ter um peso semelhante aos das relações humanas.
A ideia rompe com a tradicional visão patrimonialista dos animais, que eram tratados apenas como bens móveis pelo Código Civil de 2002. Atualmente, o entendimento majoritário, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, é de que os animais possuem dignidade própria e devem ser tratados como seres sencientes, conforme estabelecido pela Lei nº 14.064/2020, que alterou a Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/1998).
3. A Proteção Jurídica das Famílias Multiespécies no Brasil
A legislação brasileira ainda não prevê expressamente a tutela jurídica das famílias multiespécies, mas há avanços importantes na proteção dos animais dentro da estrutura familiar.
3.1. O Novo Status Jurídico dos Animais
O artigo 225 da Constituição Federal já reconhece os animais como entes merecedores de proteção do Estado, e a Lei nº 14.064/2020 reforçou essa visão ao estabelecer penas mais severas para maus-tratos a cães e gatos.
Além disso, o Projeto de Lei nº 27/2018, em tramitação no Congresso Nacional, propõe alterar o Código Civil para reconhecer os animais como seres sencientes e não meros bens, o que fortaleceria ainda mais a proteção jurídica das famílias multiespécies.
3.2. Guarda e Convivência de Animais em Casos de Separação
Uma das principais controvérsias jurídicas dentro das famílias multiespécies diz respeito à guarda dos animais de estimação em casos de separação ou divórcio. Como os animais ainda não são equiparados a filhos no ordenamento jurídico, a divisão pode ser complexa.
Alguns tribunais têm adotado o critério do melhor interesse do animal, semelhante ao que ocorre na guarda de crianças e adolescentes, determinando a guarda compartilhada entre os tutores.
Jurisprudência Notável
• O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já reconheceu a possibilidade de convivência alternada entre os ex-cônjuges e o animal de estimação, destacando que a afetividade deve prevalecer sobre a visão patrimonialista.
• Tribunais estaduais, como o TJ-SP e o TJ-RJ, têm decidido a favor da guarda compartilhada ou unilateral, analisando qual das partes tem melhores condições de cuidar do animal.
3.3. Direito à Sucessão e Herança
Outro tema relevante é a inclusão dos animais de estimação como beneficiários em testamentos. O Código Civil não permite que animais sejam herdeiros diretos, mas algumas soluções vêm sendo adotadas, como:
• Criação de fideicomissos ou fundos patrimoniais para custear os cuidados do animal após a morte do tutor.
• Nomeação de um curador ou administrador para zelar pelos interesses do animal conforme as instruções deixadas pelo falecido.
Nos Estados Unidos e na Europa, essa prática já é mais consolidada, e há expectativa de que o Brasil avance nessa direção com futuras reformas legislativas.
3.4. Responsabilidade Civil e Penal por Maus-Tratos e Abandono
A proteção dos animais nas famílias multiespécies também envolve questões de responsabilidade civil e penal.
• No âmbito civil, tutores podem ser responsabilizados por negligência ou abandono, podendo ser obrigados a pagar indenizações por danos morais e materiais.
• No âmbito penal, a Lei de Crimes Ambientais prevê penas de até 5 anos de reclusão para casos de maus-tratos contra cães e gatos.
4. Desafios para a Tutela Jurídica das Famílias Multiespécies
Apesar dos avanços, há desafios para o reconhecimento e proteção plena das famílias multiespécies no Brasil:
1. Falta de legislação específica – A ausência de normas expressas sobre a guarda de animais, direitos sucessórios e reconhecimento formal das famílias multiespécies gera insegurança jurídica.
2. Visão patrimonialista ainda presente no Código Civil – O tratamento dos animais como bens móveis ainda persiste, dificultando o avanço de sua proteção no Direito de Família.
3. Dificuldade na aplicação do melhor interesse do animal – A ausência de critérios legais objetivos para definir a guarda do animal pode gerar decisões conflitantes entre tribunais.
4. Falta de políticas públicas para apoio a famílias multiespécies – Adoção responsável, assistência veterinária pública e abrigos para animais de tutores falecidos ou em vulnerabilidade ainda são questões negligenciadas pelo Estado.
5. Conclusão
A tutela jurídica das famílias multiespécies é um tema em ascensão no Brasil, refletindo a mudança na relação entre humanos e animais. Embora ainda não haja uma legislação específica para reconhecer essa estrutura familiar, decisões judiciais e projetos de lei já demonstram avanços importantes.
Para garantir uma proteção mais efetiva, é essencial:
• Alterar o Código Civil para reconhecer os animais como seres sencientes.
• Criar normas sobre guarda e convivência de animais em separações.
• Facilitar a inclusão de animais em disposições sucessórias.
• Fortalecer políticas públicas de bem-estar animal.
O reconhecimento jurídico das famílias multiespécies não é apenas uma questão legislativa, mas um reflexo da evolução da sociedade e da importância dos laços afetivos entre humanos e seus animais de estimação.
6. Referências
• BRASIL. Constituição Federal de 1988.
• BRASIL. Código Civil (Lei nº 10.406/2002).
• BRASIL. Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/1998, alterada pela Lei nº 14.064/2020).
• PROJETO DE LEI Nº 27/2018. Altera o Código Civil para reconhecer os animais como seres sencientes.
• JURISPRUDÊNCIA: STJ, REsp 1.713.167/SP, Rel. Min. Luís Felipe Salomão, 2018.